Para encerrar o módulo de rádio, posto aqui um texto sobre um filme daquele que é o meu diretor de cinema favorito: Woody Allen. Uma pequena análise de A Era do Rádio (Radio Days), de 1987. Não ´r uma resenha, não é uma crítica: apenas um apanhado de sensações e impressões, derivadas desse longa que foca direto no tema que é caro ao que agora estudamos: toda a mitologia que cerca o rádio.
“Now, I love old radio histories. And I know a million of them. I’ve collected them down through the years, like a hobby. Anecdotes and gossips and inside histories about stars. Plus, I recall so many personal experiences from when I grew up and listened to one show after another.”
Essa fala, que aparece logo aos 4 minutos, dita pela voz analasada e ansiosa, inconfundível, de Woody Allen é o resumo perfeito não só do longa, mas de toda uma geração, toda uma época que aprendeu a viver ao redor do aparelho de rádio.
(E chega a ser melancólica a continuação da fala, que vem logo a seguir: “Now it's all gone..”.)
O ano é 1943, época de ouro da transmissões radiofônicas, onde cada casa tinha um aparelho e ao redor dele orbitavam todas as atenções. A trama gira ao redor de um garoto, Joe, sua família e a rotina de todos ali, oito pessoas vivendo no subúrbio, todos tendo a vida diretamente afetada pelo programas de rádio. As transmissões jornalísticas, os programas de auditório, as radionovelas: tudo ditando o ritmo do cotidiano.
A estrutura do filme é episódica, narrando diversos acontecimentos da infância de Joe (que é quem, depois de velho, narra o filme, em off) e de seus parentes. O anel do super-herói da radionovela, objeto de seu desejo. A tia que escuta a transmissão de Guerra dos Mundos, feita por Orson Welles. A prima que se veste de Carmen Miranda para acompanhar as músicas da cantora brasileira. A Segunda Guerra narrada em detalhes. A transmissão, em tempo real, de um acidente fatal com uma menina de oito anos. Riso e tensão e choro, transmitidos pelas ondas.
Há também a história paralela de Sally, uma garçonete que, também apaixonada pelo rádio (e que não o era nessa época?), batalha para virar uma estrela, como aquelas que ela ouve todos os dias. Ela se envolve com astros inescrupulosos de meia-idade, mafiosos gentis, fonoaudiólogos, vê sua atuação em uma “radio peça” interrompida pelos boletins do ataque à Pearl Harbour.
O filme é, a despeito de qualquer mérito cinematográfico (esse não é o ponto aqui), uma linda declaração de amor. Allen imprime, em cada fotograma, sua paixão pelo rádio e pela época. A beleza das falas e dos planos, toda a reconstituição de época. Cada uma das cenas, sem exceção, é encharcada de nostalgia - pequenas odes à um tempo de inocência, onde uma caixa falante era o modo das pessoas escaparem de um realidade não tão agradável assim (a Guerra, o ambiente pós-Depressão, a pobreza). O humor leve e irônico, tão característico do diretor, aqui se torna doce, de uma ternura exposta nos belos planos em que o garoto anda por uma praia fria e deserta. Allen diz, em sua narração salpicada de saudades: and forgive me if I tend to romanticize the past.
Outra bela fala sua, que explicita o clima de “lembranças engraçadas, porém melancólicas” que perpassa cada segundo do longa é aquela que encerra o filme. No reveillon de 1943, Allen filma o céu da cidade da cobertura de um prédio. A atmosfera é brilhante, cortada de vez em quando pelos fogos de artifício. Sobre essa imagem, vem sua voz, debruçada em tom que, se não é triste, soa como uma dolorida constatação:
“And I've never forgotten any of those people or any of the voices we used to hear on the radio.
Although the truth is with the passing of each New Year's Eve those voices do seem to grow dimmer and dimmer.”
As vozes se distanciam e o rádio definha lentamente. É a verdade, crua e nua, exposta em sua angústia. Ele definha, mas tem um passado, imenso. E o que tem passado nunca morre de verdade – sobrevive na memória daqueles que aquilo vivenciariam, não podendo ser apagado, é mais que parte da história: é parte da própria existência.